A diversidade cultural própria da sociedade brasileira, percebida em nossa língua, culinária, música, cinema e moda, é manifestada com muita força também na arquitetura do país.

Geralmente, as diversas manifestações culturais próprias do país recebem a alcunha de popular, sendo mais percebida na música – a Música Popular Brasileira (MPB), com seus artistas mundialmente consagrados.

Se de um lado temos a música popular, com a mistura de ritmos e sons reconhecidos em todas as regiões do país, por outro lado, temos a arquitetura que tradicionalmente foi – e ainda é em certo grau – concebida como uma arte elitizada, associada às altas classes econômicas brasileiras.

Contudo, existe um conceito de arquitetura popular brasileira que perpassa essa percepção de atributo da elite socioeconômica. Essa compreensão vai além da arquitetura colonial e erudita, coexistindo durante o período modernista brasileiro (percebido com mais força na arquitetura nacional a partir dos anos 1930) e em muito se relaciona com a produção atemporal da autoconstrução arquitetônica no Brasil.

Para tanto, é importante entender a diferença entre o popular e o vernacular.

As contribuições da obra de Gunter Weimer

Arquitetura popular
Fonte: João Diniz Arquitetura

Gunter Weimer é arquiteto urbanista, professor e pesquisador brasileiro. Conduziu a produção científica de obras relevantes também nas áreas da História, da Cultura e do Patrimônio da Arquitetura Brasileira.

Uma das mais conhecidas colocações de Weimer é a condenação do termo vernáculo, que na etimologia da palavra está associado ao escravo nascido na casa do senhor.

Weimer aponta o termo popular como alternativa mais coerente e correta empregada para se referir às manifestações culturais construtivas do povo brasileiro.

Os achados de Weimer reafirmam a diversidade como um dos principais traços culturais brasileiros.

No processo histórico de ocupação e produção do espaço habitado no Brasil, as diversas técnicas construtivas e modelos de ocupação são consequência dos diferentes grupos e etnias que compuseram à população – das contribuições indígenas e africanas às germânicas e holandesas, por exemplo – que ocuparam territórios variados e que produziram a arquitetura popular nacional.

O que é arquitetura popular afinal?

O conceito de arquitetura popular está essencialmente atrelado à construção popular e, no caso, à autoconstrução popular residencial. Logo, a arquitetura popular brasileira é consequência das formas de construção popular.

Construção popular
Fonte: João Diniz Arquitetura

Por sua vez, a autoconstrução popular é resultado da combinação entre:

  1. diferentes materiais e técnicas construtivas;
  2. diversos saberes e conhecimentos tradicionais e culturais de grupos sociais e étnicos distintos.

O que define a Arquitetura Popular Brasileira?

De acordo com o que é destacado por Weimer, estas são as principais características que definem a Arquitetura Popular Brasileira:

Simplicidade

Arquitetura produzida utilizando materiais naturais (do meio ambiente) e associada às limitações econômicas da população;

Adaptabilidade

Arquitetura resultante da heterogeneidade cultural e do pluralismo de conhecimentos construtivos tomados de territórios distintos e adaptados às condições brasileiras;

Criatividade

Arquitetura que não emprega necessariamente tecnologias industriais, mas que aplica a inventividade na utilização de materiais construtivos.

Autoexplicação

Arquitetura que evidencia materiais e técnicas utilizados na própria forma. Ao contrário de construções manifesto, que utilizam do desenho e criatividade para ocultar características dos materiais utilizados, a arquitetura popular torna os materiais e as técnicas utilizadas parte do projeto, com a manutenção de texturas, formas e cores, por exemplo;

Multisecularidade

Arquitetura que comunica diversas tradições culturais, de outros séculos e de diferentes grupos sociais e étnicos nas manifestações e características construtivas;

Das tocas e ocas indígenas aos casarões do período colonial, às casas de taipa do Nordeste, às palafitas da Amazônia, às casas de pedras do Sul, às aldeias de Minas Gerais etc., a Arquitetura Popular Brasileira é forma – a manifestação no espaço – da própria cultura construtiva popular e hereditária, passada de gerações a gerações como ferramenta de sobrevivência e estratégia de resistência aos fenômenos históricos de fragmentação territorial e segregação espacial socioeconômica no Brasil.

Atualmente, por mais que sejam a representação física e espacial das severas vulnerabilidades e desigualdades sociais que retratam a cidade brasileira, as favelas representam também a resistência popular e reúnem diversos símbolos da Arquitetura Popular Brasileira.

Autoconstrução Assistida: novas possibilidades para a arquitetura residencial e a habitação social no Brasil

É evidente que a autoconstrução é a forma de arquitetura popular com maior presença no território nacional ao longo da história.

Assim como o mercado formal e a produção legal das construções nas cidades não param, a autoconstrução por meio dos saberes populares e empíricos sobre arquitetura, engenharia e construção civil é um fenômeno incessante e inesgotável nos centros urbanos brasileiros.

Devido às limitações financeiras, à baixa qualidade de materiais e à falta de informações técnicas, a precariedade construtiva habitacional nos assentamentos urbanos informais é também um traço contemporâneo inegável da arquitetura popular brasileira.

As grandes cidades brasileiras apresentam altíssimos índices de déficits habitacionais, e a necessidade de soluções é urgente, sejam técnicas arquitetônicas que garantam a segurança de pessoas, ou políticas públicas de habitação.

Novas tecnologias e Autoconstrução Assistida como soluções para a habitação urbana

Foi-se a época em que processos compulsórios e violentos de remoção de famílias em assentamos informais eram aceitos pelos agentes políticos, da lei e pela sociedade – ainda que alguns processos ainda aconteçam.

Autoconstrução assistida
Fonte: João Diniz Arquitetura

Ao contrário do que ocorria entre as décadas de 1950 e 1980, existe hoje um aparato legal e constitucional, incluindo o Estatuto da Cidade, que zela pelo direito à moradia, pelo acesso à cidade e dispõe de instrumentos urbanísticos para intervenção e regularização urbanas.

Nesse sentido, diversos grupos de arquitetos urbanistas, especialistas em legislação urbana e direitos humanos, engenheiros civis e ambientais, dentre outros, passaram a atuar na promoção de assistência técnica para intervenções arquitetônicas e urbanas em processos colaborativos com a sociedade civil.

Esses processos consistem, via de regra, em dinâmicas participativas que se caracterizam por:

  • Fortalecimento de relações comunitárias e institucionais envolvendo as famílias assistidas, os técnicos e o poder público, agências e demais instituições envolvidas;
  • Capacitação e educação das comunidades para protagonizar de forma orientada e segura o processo construtivo;
  • Criação de soluções construtivas inovadoras e de baixo-custo para arquitetura residencial individual e coletiva;
  • Manifestação do legado da Arquitetura Popular;
  • Construção de modelos institucionais e financeiros inovadores para produção habitacional em massa de unidades habitacionais personalizáveis e adaptáveis;

Exemplo é o caso do Chile, onde o Elemental Chile, escritório liderado por Alejandro Aravena, se destacou pelo projeto Quinta Monroy que otimizou os recursos disponíveis para ampliar o número de unidades habitacionais produzidas, oferecendo a estrutura fundamental e permitindo que os próprios moradores realizem a conclusão das casas com o passar do tempo.

Quinta Monroy / ELEMENTAL
Fonte: Quinta Monroy / ELEMENTAL

As iniciativas Orangi Pilot Project, no Paquistão, e Something & Son, na Inglaterra, realizam projetos em que equipe técnicas se encarregam das estruturas e da infraestrutura residencial, enquanto as comunidades são capacitadas por meio de oficinas comunitárias realizadas em escritórios provisórios montados in loco e equipados com laser scanner, drones, softwares BIM, modelagem 3D, plotters portáteis, laser cutters e impressoras 3D.

As tecnologias de ponta nunca foram tão acessíveis como são hoje, e a utilização de softwares e equipamentos tecnológicos têm o potencial para desencadear soluções inovadoras, simples, práticas e rápidas para atender demandas urbanas urgentes, como o déficit habitacional e a falta de infraestrutura básica, quando combinadas com o legado dos saberes e conhecimentos da Arquitetura Popular Brasileira.

As Organizações da Sociedade Civil, escritórios de arquitetura, coletivos sociais, universidades e empresas do segundo setor já se auto-organizaram para colocar em ação todo esse potencial criativo em ações colaborativas e inspiradoras.

No Brasil, ainda que a autoconstrução e a arquitetura popular seja associada em sua maioria à construção de moradias em áreas periféricas e precarizadas, já despontam iniciativas que procuram prestar assistência e auxiliar o processo de construção. Em sua maioria, as iniciativas são idealizadas por organizações da sociedade civil que trabalham com foco nas cidades, como é o caso da OSC Soluções Urbanas, que lançou a plataforma Arquiteto da Família em parceria com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro. A proposta da plataforma é arrecadar verbas para o financiamento coletivo de reformas e melhorias em moradias autoconstruídas

Resta saber se as iniciativas ainda restritas à sociedade civil serão ampliadas e transformadas em políticas públicas presentes em projetos de governo, incorporando algumas das propostas apresentadas aqui, contribuindo para construção de cidades mais justas, acessíveis e seguras a todos.