Um ode à capital eterna do Brasil – ou como conhecer o Rio de Janeiro pode nos auxiliar na construção de soluções a problemas complexos
Nosso giro pelo Brasil está terminando e desembarcamos nela, a Cidade Maravilhosa, capital eterna do país. Detentora do título de capital entre os séculos 18 e 20, a cidade foi sede do governo colonial português na América, capital do Vice-Reino do Brasil e capital do Império Português, quando por aqui desembarcou toda a corte e a burocracia metropolitana, posteriormente alçada à capital do Império do Brasil e capital da República. São Sebastião do Rio de Janeiro, hoje sem referência religiosa, é a segunda maior cidade do país, um importante centro econômico e cultural, e sobretudo um caldeirão de histórias.
Fundada no século 16, em uma história que envolve a presença de franceses na região da baía de Guanabara e a luta entre indígenas, a cidade cresceu entre águas e morros. Ou melhor, em uma faixa de terra que hoje compreende as regiões centrais da cidade e em morros que não mais existem – como o morro do Castelo, demolido na década de 1920; Cercada pela exuberante natureza, desde cedo a povoação chamou a atenção de quem passava por ali. Os tempos foram passando e a cidade foi se transformando, mantendo seu charme, suas histórias e suas características quase únicas.
A capital colonial
Foi em 1763 que o Marquês de Pombal, quase um primeiro-ministro do reino português, transferiu a capital colonial de Salvador para o Rio. Essa medida teve como motivação o surto de exploração mineral na região que hoje chamamos de Minas Gerais. Das minas, as comitivas desciam as serras rumo aos portos de Ubatuba, em São Paulo, e Paraty e Rio de Janeiro. A proximidade, quando comparada à Salvador, assegurava o maior controle metropolitano sobre a atividade extrativista e ajudava no combate ao contrabando dos bens mais importantes naqueles idos do século 18: os metais preciosos e os escravizados.
Em certa medida, a história do Rio de Janeiro (e de todo o país) é atravessada pela história da escravização de africanos e seu uso como mão de obra aqui na América. Isso porque o comércio transatlântico de escravizados foi uma atividade altamente lucrativa para a coroa portuguesa e depois para a brasileira, o que levou o porto do Rio a ser considerado o maior porto de escravizados nas Américas.
Dona de uma história tecida com linhas políticas, sociais e econômicas, a capital fluminense se caracteriza como um ponto único dentro do país – e arrisco dizer que do mundo. São camadas e mais camadas de histórias e memórias que se sobrepõem em arquiteturas, ruas, costumes, tradições, emolduradas por uma natureza de tirar o fôlego. Certamente, dos muitos acertos que demarcam as idas e vindas da cidade, os maiores são posicionar os dois aeroportos em meio às águas da Guanabara, o que torna impossível um turista não suspirar ao observar do alto, enquanto o avião pousa, o panorama da Cidade Maravilhosa.
Pelo porto, a chegada da modernidade
A paisagem urbana do Rio de Janeiro é reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco, instância da ONU que atua na promoção da educação, da ciência e da cultura. Além da cidade como um todo, a região do Valongo, na área portuária da cidade, é reconhecida como Patrimônio da Humanidade. Isso porque ali se formou e funcionou ao longo dos séculos o maior porto de escravizados do mundo.
Dado seu valor histórico, cultural e memorialístico, a região do Valongo passou por um grande processo de revitalização iniciado em 2009. Juntaram-se muitas demandas: a realização das Olimpíadas de 2016 na cidade, a realização da Copa do Mundo FIFA em 2014 aqui no Brasil e outros megaeventos. Além disso, dentro do discurso das autoridades municipal e estadual, as obras eram uma forma de criar uma nova centralidade para a cidade, em uma área de baixo adensamento e com muito potencial construtivo.
Seja ou um outro argumento, as obras foram realizadas e em meio a elas surgiram dois grandes novos museus na cidade: o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, os dois localizados na Praça Mauá. Além deles, foi criado também o AquaRio, um aquário nas proximidades, além da implantação de uma roda-gigante e a construção de um sistema de transporte coletivo baseado em VLTs, os veículos leves sobre trilhos, ou bondinhos modernizados.
Bem ou mal, a região portuária se transformou em uma nova atração turística na cidade. E entre tantas novidades, permanecem as histórias e as memórias da cidade, sobretudo porque a região portuária, que tem sua origem lá nos séculos 18 e 19, com o tráfico de escravizados, também é reconhecida como berço do samba carioca, na região que é chamada de Pequena África – que vem sendo retratada na novela Nos tempos do imperador.
Outra informação: a região portuária, dada sua importância para a economia da cidade, foi, lá no começo do século 20, palco de outras obras urbanas que deram a forma que hoje caracteriza a região. Explicando, no começo do século 20, imerso em um surto modernizante inaugurado pela República, a administração municipal da capital federal resolveu que era hora de adequar a cidade ao seu novo título. Assim, foram abertas novas avenidas na região central e o porto foi alinhado, com o aterramento de grandes áreas nos pés dos morros da Conceição e da Saúde. Antes dessas obras, o porto carioca se caracterizava por funcionar em trapiches, estruturas de madeira que avançavam sobre a Guanabara e permitiam o embarque e desembarque de mercadorias. Ah! Importante: as embarcações ancoravam longe dos trapiches, sendo que a logística ali acabava sendo demorada. Com o alinhamento do porto, as embarcações passaram a ancorar em paralelo ao continente, permitindo o uso de guindastes e a aceleração da atividade portuária.
Além de otimizar o desembarque, foi preciso acelerar o trânsito das mercadorias, e das pessoas, pela cidade. Não por menos, duas avenidas construídas no século 20, as chamadas Rio Branco, antes batizada como Central, e a Rodrigues Alves (uma referência ao presidente brasileiro que ocupava o cargo durante as obras no porto), foram construídas no mesmo momento em que as obras do porto se desdobravam.
A Rio Branco atravessa o centro da cidade no sentido norte-sul, ligando a região da Glória (no sul) à região do porto (no norte). Avançando porto adentro em direção à zona norte da cidade, foi construída a Rodrigues Alves e entre elas, como marco de todo o progresso e modernidade, a praça Mauá. Nela, como já dito, estão hoje os dois museus, o MAR e o do Amanhã. Ainda que sejam responsáveis pelo retorno ao porto ocorrido nas últimas décadas, os museus não estão sozinhos na Praça. Além deles, quase esquecido, está o edifício A Noite, o primeiro arranha-céu da América Latina.
Vista aérea da praça Mauá já com o edifício A Noite.
Vista aérea da praça Mauá no começo do século 20 (1910). Na vertical é possível identificar a avenida Rio Branco, e na parte inferior, quase na horizontal, a Rodrigues Alves.
Inaugurado em 1927, o edifício A Noite foi o primeiro arranha-céu da América Latina. Sua altura, hoje modesta perto de outras construções, como os gigantes de Balneário Camboriú, chamava a atenção de quem desembarcava no porto carioca, ainda mais porque a cidade era predominantemente plana, com construções modestas, criando um horizonte cortado pelas torres das muitas igrejas e pelos morros. Ainda assim, naqueles anos o Rio já era, como chamou Ruy Braga, uma metrópole à beira-mar, dona de uma requintada e fervente vida cultural.
Com projeto assinado por Joseph Gire, mesmo arquiteto responsável pelo Hotel Glória e pelo Copacabana Palace – ainda hoje uma joia luxuosa de frente ao mar -, o edifício A Noite se tornou um marco arquitetônico da cidade e local de visitação. Desde sua inauguração até hoje, o prédio permanece como marco carioca e já recebeu diversos tipos e atividades. Nele, por exemplo, funcionou a Rádio Nacional, maior produtora e transmissora de conteúdos radiofônicos do país, criada em 1936 durante o governo de Getúlio Vargas. Também por lá passaram outras atividades governamentais, escritórios e até uma boate.
Hoje, o prédio ocupa um lugar de quase esquecimento, tendo sido colocado a leilão pelo governo federal, proprietário do imóvel. Ainda assim, sua localização e relação com a cidade são atemporais, o que sustenta, inclusive, seu título de patrimônio histórico carioca. Patrimônio que certamente viu muita gente importante atravessando seus corredores, subindo seus elevadores. E essa, possivelmente, é a alma encantadora – fazendo coro a João do Rio, autor que buscou traduzir essa alma – que atravessa todos os espaços cariocas.
No sobe e desce, a metrópole
Assim como os elevadores do edifício A Noite detém inúmeras históricas de figurões da República e da cultura brasileira, o gigantesco exército de elevadores cariocas já acompanhou as histórias de cidadãos comuns, trabalhadores que vivem e compõem a alma da capital eterna do Brasil. Presentes em construções residenciais, comerciais e governamentais, os elevadores se somam às escadas rolantes e garantem, assim como em São Paulo, o trânsito frenético da metrópole.
Nas estações de transporte coletivo, dos trens suburbanos, passando pelo metrô, até às paradas do BRT, esses equipamentos garantem a acessibilidade de todas as pessoas aos meios de locomoção. Lá no Rio, inclusive, a construção da mais nova linha de metrô, conectando a Zona Sul à Barra da Tijuca, chamou a atenção pela complexidade das obras, que atravessaram morros e tamanho das estações, característica que demandou a instalação de esteiras rolantes.
Deixando esses lugares de transporte, os elevadores e as escadas rolantes estão esparramados também em pontos turísticos da cidade. Demarcando a entrada da Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar talvez seja um dos principais cartões postais da cidade junto com o Corcovado e seu Cristo Redentor. Nos dois pontos turísticos, elevadores e escadas garantem o acesso de qualquer pessoa que deseje ver do alto a Cidade Maravilhosa.
E o que é a alma encantadora carioca senão o vai e vem de pessoas pelas ruas que sobem e descem os morros. Pelas escadarias que permitem o acesso de pedestres, pelos elevadores urbanos que transportam moradores dos morros entre suas casas e o asfalto, pelos planos inclinados que garantem o deslocamento em áreas de difícil acesso. O Rio é uma cidade de contrastes e complexa, não por menos as soluções para manter o frenesi metropolitano demandam um pensamento complexo.
Um passageiro pode utilizar o trem suburbano até a região central da cidade, utilizar escadas rolantes para acessar o metrô e se deslocar até uma região em que precisará subir em uma torre utilizando um elevador. Da mesma forma, outro passageiro pode sair de sua casa, descer o morro em um plano inclinado ou elevador direto para uma estação de metrô, atravessando-a em esteiras rolantes.
Quando as ferramentas são diversificadas, os caminhos possíveis até um propósito são muitos. Essa é a essência por trás do espírito inovador, da vontade de produzir o novo sem esquecer daquilo que já é conhecido.
O Rio de Janeiro foi nosso último ponto de desembarque no breve giro pelo Brasil. Em cada uma das quatro cidades que visitamos (Salvador, São Paulo, Balneário Camboriú e o Rio), pudemos conhecer um pouco de suas histórias e de suas relações com os elevadores, as escadas e esteiras rolantes, e planos inclinados, soluções para o transporte sustentável que estão presentes em nossos cotidianos.
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